domingo, 26 de abril de 2009

Globalização e Contemporaneidade

Há muito tempo penso em escrever um artigo cujo tema central seja a globalização (ou as globalizações). Afinal, esta palavra é uma das mais repetidas cotidianamente e é também a mais abstrata em significado. Globalizar-se significa exatamente o que? Há apenas uma ou múltiplas globalizações? Qual a origem deste processo e para onde ele nos levará? Lendo o mais recente livro de Anthony Giddens “Mundo em Descontrole”, decidi iniciar a redação deste artigo.

Sem dúvidas, discutir esse tema, ou pelo menos refleti-lo, é uma necessidade para lidar da maneira adequada com os novos tempos, tanto na esfera pública como na privada. Estado, mercados e indivíduos são remodelados por esse processo a todo o momento. Temos de compreender a história, a fim de fazer história.



A partir do Iluminismo, o mundo reencontrou-se com a ciência. E com a difusão do pensamento racionalista, criamos novos conceitos. Passamos então a entender a razão e o pensamento científico como instrumentos de redenção para a humanidade.
Assim, escolas diferentes, amiúde opostas, tanto da sociologia, como da filosofia e da ciência política começaram a prever um mundo controlado. Uma nova realidade seria traçada pela razão e pelo conhecimento científico, uma esfera onde tudo poderia ser previsto e tudo então estaria em ordem. Todos creram nisso e seu estopim se deu através da conjunção da administração científica (taylorismo) com os sistemas políticos autoritários. A Europa foi dominada, começando em Portugal e indo até a Alemanha. Este novo modelo político ganhou força ainda na América do Sul, no Brasil e Argentina.

Algo deu errado nessa construção. Hoje vivemos não mais um mundo em controle, vivemos num mundo em descontrole. Estamos ameaçados pela destruição ambiental, pelo terrorismo, pelo fundamentalismo, pela violência cotidiana e pelas incertezas, em suma, pela liquidez da vida moderna, como trabalha brilhantemente Zygmunt Bauman.

Esse processo de modificação da sociedade que cria um novo paradigma é justamente a globalização. Ao mesmo tempo, muitos grupos inconformados atacam este processo. De um lado, a velha esquerda, de outro, a velha direita. Para o primeiro grupo, a noção de globalização “é uma ideologia espalhada por adeptos do livre mercado que desejam demolir sistemas de previdência social e reduzir as despesas do Estado”[1]. Para o segundo, a ameaça é frontal sobre a família e sobre as tradições. E, completam eles, em resposta a esse processo, os governos devem continuar capazes de exercer controle, caso não consigam, devem retomar as rédeas através da ampliação do poder estatal.

Por muitos a globalização ainda é vista como um “fenômeno quase exclusivamente em termos econômicos. Isso é um erro. A globalização é política, tecnológico e cultural, tanto quanto econômica. Foi influenciada acima de tudo por desenvolvimentos nos sistemas de comunicação que remontam apenas ao final da década de 1960”[2].

Por tudo isso, acabamos criando dois mundos: um mundo real, físico e concreto e outro virtual e abstrato. Exemplifico a tal existência através de dois exemplos. Para a maior parte da humanidade, um milhão de dólares é muito dinheiro. Isso são dez mil notas de cem dólares. Podemos, com muito esforço, estocar esse dinheiro numa mala, por exemplo. Por outro lado, uma pilha de um trilhão de dólares – um milhão de milhões – teria mais de 193 quilômetros de altura, vinte vezes mais que o monte Everest. Agora, se analisarmos o montante de dinheiro que é movimentado a cada dia nos mercados globais, perceberemos que este valor será muito mais que um trilhão de dólares. Assim, embora seja movimentado todo esse dinheiro, ele não existe concretamente, é virtual.

A incerteza surge da conexão. A interação, muito complexa e difícil, desses dois mundos completamente diferentes talvez seja um dos motivos deste mundo em descontrole. A crise financeira atual demonstra isso, a crise asiática e desestabilização econômica de diversas nações, que aparentavam apresentar grande solidez, comprova como a interação entre estes dois mundos é conturbada.

Embora tenha citado apenas um exemplo econômico, a globalização possui um impacto imensurável na vida privada dos cidadãos. Desde as relações interpessoais até o sentimento de pertencimento são completamente transformados. Um exemplo citado por Giddens é marcante:
“Quando a imagem de Nelson Mandela pode ser mais familiar para nós que o rosto do nosso vizinho de porta, alguma coisa mudou na natureza da experiência cotidiana”.
A partir disso, podemos pensar na globalização como um sistema de múltiplas vias, como defende Boaventura de Sousa Santos. Não há apenas uma globalização, mas múltiplias globalizações ocorrendo no mundo. E não podemos mais considerar que os Estados sejam os únicos ou mais relevantes agentes desse processo. Com certeza, a imagem de Osama Bin Laden é muito mais recorrente ou conhecida nos Estados Unidos da América do que a imagem de muitos deputados eleitos pelo próprio povo. Da mesma forma, investidores globais podem hoje influenciar muito mais a economia norte-americana do que prefeitos eleitos. O mundo está realinhando a divisão de poderes e, com isso, o conceito de divisão internacional do trabalho, que outrora se aplicava perfeitamente à geopolítica mundial, hoje perde espaço.

O sociólogo norte-americano Daniel Bell delineia de forma bastante pertinente essa nova realidade para os Estados nacionais, ao afirmar que a nação se torna não só pequena demais para resolver os grandes problemas, como também grande demais para resolver os pequenos.
Muitos autores acreditam no fim dos Estados nacionais nessa nova realidade. Acredito que isso seja um erro. De forma nenhuma os Estados nacionais tendem a desaparecer, ao contrário, tendem a ganhar cada vez mais corpo, a diferença é que é um corpo definido e delimitado. Assim, o Estado é, cada vez mais, um regulamentador da atividade econômica, por exemplo, não um controlador. E ainda, amplia sua função como garantidor dos direitos humanos. Ou seja, há um movimento em dois sentidos, em algumas esferas antes controladas pelo Estado, este ente desapareceu. Em outras, o Estado passou a ser o centro.

Outra conseqüência da globalização é o ressurgimento de nacionalismos e desejos de reconhecimento. Isso ocorreu em razão da delimitação da esfera pública e da esfera individual, com a restrição da intervenção estatal na esfera privada. Com a globalização, de forma nenhuma os nacionalismo se extinguirão, muito contrário, a tendência é o surgimento de novos nacionalismos.

Mesmo assim, a mudança é categórica: não haverá mais nacionalismos surgindo a partir de instituições como o Estado ou por desejos de expansão territorial. Os nacionalismos tendem a se formar em razão da formação de identidades, da luta pelo reconhecimento. O nacionalismo deixa de se formar pela esfera objetiva segundo o modelo de “um Estado, uma nação, um povo” e passa e se construir pela esfera subjetiva e pelas escolhas da formação de uma identidade. Assim, o nacionalismo pode ascender fora das fronteiras nacionais correspondentes, por exemplo, é bastante comum que turcos imigrantes na Alemanha adotem perspectivas nacionalistas, enquanto muitos turcos que vivem na Turquia se cosmopolitizem.

Por tudo isso, não podemos mais ver a globalização como um processo restrito à ordem financeira. A globalização afeta tanto nossas vidas que modifica o conceito de identidade individual de todos os seres humanos no planeta e mais do que isso, como explica Giddens, ao reduzir a influência das tradições e costumes na vida cotidiana acaba aumentando a ansiedade individual criando novos vícios.

Como resposta, não podemos simplesmente negar esse processo, muito menos tentar fugir dessa tendência. É necessário que nos integremos ao mundo interdependente da maneira mais responsável e cautelosa possível, defendendo a cultura nacional e protegendo as culturas regionais e locais. Da mesma forma, o livre comércio, embora não seja um benefício absoluto, deve ser perseguido e promovido, sem euforia e de maneira gradual, para que os impactos negativos sejam os menores possíveis, não destruindo as economias de subsistência, por exemplo.

É ainda importante que tenhamos em vista o fato de que o processo de globalização não é um caminho linear, há momentos que precisamos adotar medidas protecionistas. No entanto, essas precisam ser temporárias e nunca permanentes.

Viveremos num mundo de incertezas, no entanto, neste admirável mundo novo ao contrário as oportunidades se multiplicarão com extrema velocidade. Os líderes políticos não poderão mais trabalhar de forma isolada, no entanto, serão a chave do progresso da humanidade, caso operacionalizem suas ações de forma multilateral e coordenada. Um novo tempo está por vir, e não podemos encarar o futuro como um problema, tão pouco como uma solução. Devemos vê-lo tal qual se apresenta: como um desafio.

[1] Giddens, Anthony. Mundo em Descontrole. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. – 6ª Ed. – Rio de Janeiro: Record, 2007.
[2] Giddens, Anthony. Mundo em Descontrole. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. – 6ª Ed. – Rio de Janeiro: Record, 2007.